Autora:
Rosangela Aufiero – CRP- 5.082/01
Graduada em psicologia pela Universidade Gama Filho/ RJ- 1988
Especialização em Psicopedagogia e Interdisciplinaridade- Universidade
Luterana do Brasil/AM- 1996
Especialização em Saúde mental- Fiocruz/AM -2004
Psicóloga do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro.
E-mail:
rosangela_aufiero@yahoo.com.br
Desde a promulgação da Lei n. 10.216/2001,
de Paulo Delgado, que legitima ações voltadas para a reforma psiquiátrica e
preconiza o surgimento, tanto de serviços quanto de atuação, com abordagens
mais humanistas, no tratamento para portadores de transtornos mentais, em todo
o país, os serviços municipais e estaduais vêm-se adequando ao enquadramento da
lei. No Estado do Amazonas, entretanto, esse processo tem ocorrido lentamente,
principalmente na cidade de Manaus, com CAPs (Centro de atenção psicossocial)
insuficientes para atender a demanda do estado, contamos ainda com o Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro (C. P.
E. R. ) como principal ponto de referência no processo de assistência mental.
Nos
Serviços de Psiquiatria e Psicologia, oferecidos pelo ambulatório Rosa Blaya do
C. P. E. R. , percebe-se que, ao longo dos anos 2000 tem mudado o perfil da
clientela atendida. Observações empíricas constataram que, em determinado
período, há um grupo específico de trabalhadores que chegam, em grande número,
aos serviços de atendimento institucional. Em geral, são trabalhadores que
vivem momentos de tensão social, econômica e política, que os conduzem a
processos de estresse emocional.
Para compreender
a dinâmica institucional de acolhimento a essa clientela, escolhemos acompanhar
os rodoviários do transporte coletivo urbano, devido apresentar-se em maior
número, a partir de 2005. Inicialmente encaminhados pela própria instituição
psiquiátrica, ou pelo sindicato dos motoristas. Hoje, os próprios participantes
do grupo trazem outros colegas nos quais identificam sofrimento mental. O grupo
é aberto, não havendo uma obrigatoriedade de participação.
O
trabalho de grupoterapia com motoristas de ônibus do sexo masculino consiste em
um espaço de escuta para além dos sintomas que seus participantes trazem, no
qual estes podem refletir sobre as relações do trabalho com o sofrimento
psíquico, com a subjetividade e ambiente. Os temas para discussão são de livre
escolha dos mesmos, tais como: a organização do trabalho, violência do
trânsito, dificuldades nos relacionamentos com colegas, amores no período de
trabalho, o auxílio benefício do INSS, incertezas sobre o retorno ao trabalho e
a difícil convivência com familiares em tempo integral. O suporte teórico que
sustenta a escuta ocorre na articulação entre a psicanálise e psicodinâmica do
trabalho.
O
grupo está em funcionamento desde 2007, com reuniões quinzenais. Utilizamos o
método batizado como grupo de escuta,
inspirado no modelo de clínicas de recepção, proposto por alguns teóricos, que
pensam a reforma psiquiátrica e novos modelos de escuta e intervenção, como
Montezuma (In QUINET,2001) e Tenório
(2000). Tem como objetivo promover um espaço de
escuta, no qual os trabalhadores possam encontrar-se e discutir suas
experiências, para que, a partir daí, compreendam como desenvolveram o processo
de transtorno mental, culminando muitas vezes, no afastamento do trabalho.
A ausência do reconhecimento de que trabalhadores podem apresentar
sofrimento psíquico oriundo da experiência com o trabalho, pode levar ao processo de psiquiatrização do sintoma. Segundo
Tenório (In: QUINET, 2001, p. 122), o
modelo médico ainda é predominante no tratamento para portadores de sofrimento
psíquico, pois “a noção de
reabilitação denota, na medicina, uma ação posterior à cura, ou tratamento, que
consiste em fazer o sujeito recuperar as capacidades e habilidades prejudicadas
pela doença”. Essa ideia de
reabilitação é incompatível para trabalhadores que desenvolvem um quadro de
sofrimento psíquico, uma vez que não se abre espaço para a reflexão sobre em
que aspecto a organização do trabalho contribuiu para o surgimento de um quadro
de sofrimento psíquico intenso, no trabalhador.
A
dinâmica institucional do ambulatório colabora com essa situação, uma vez que o
paciente/trabalhador raramente volta a consultar-se com o primeiro psiquiatra
que o atendeu, dificultando, assim, um acompanhamento mais sistemático, além do
vínculo médico-paciente dissolver-se. Concordamos com Campos (2001, p. 103),
quando afirma que “um usuário muitas vezes está dissociado, e que o serviço
contribui para dissociar ainda mais. Remédio é com psiquiatra. Escuta é com
psicólogo. Trabalho é com terapeuta ocupacional”.
O sujeito
dentro desse modelo psiquiátrico perde sua condição humana, compartimentaliza-se e fragiliza-se, quando
se espera que o ‘doutor’ acerte no remédio que irá fazer calar sua dor
psíquica. Segundo Cruz (In: FUKZ e
FERRAZ [Org.], 2006), a clínica contemporânea, tal como está montada, leva a
novos processos de manicomialização, agora nas relações entre especialistas em
saúde mental e paciente.
Diante
disso, como os trabalhadores podem desenvolver uma demanda que amplie a
compreensão sobre seu sofrimento, e não se perder no processo de alienação que
o sistema impõe? Segundo Meireles (In:
FUKS e FERRAZ, 2006), o desenvolvimento de demanda é um processo que tira o
paciente de um lugar passivo e o põe autor de seu processo de “cura”,
formulando a questão sobre o sofrimento a si mesmo e não mais ao
psicoterapeuta.
Já
Dejours (2007) propõe que passe da análise da demanda individual para o
coletivo, apontando que uma análise individual fica restrita ao funcionamento
psíquico de quem demanda. Enquanto, coletivamente, pode constituir-se numa demanda
social. Pois é esta última que poderá causar algum tipo de transformação
individual e coletiva, possibilitando ressituar o indivíduo na sua experiência
de sofrimento psíquico desenvolvida na dinâmica do trabalho.
Transformações
no sistema de saúde pública, em especial de saúde mental, também são
necessárias, a fim de que a clientela possa sair da visão psiquiátrica do
sintoma, de forma a desenvolver demanda de ajuda. Atualmente, a dinâmica
institucional tal como está montada restringe técnicos e pacientes, do lado dos
técnicos desenvolvem uma escuta árida e da parte dos pacientes uma demanda cronificada.
Considerações finais
Acompanhando
os grupos de motoristas que buscam ajuda em ambulatório de saúde mental,
observa-se que a dinâmica institucional compromete o processo de reabilitação
desses trabalhadores, envolvendo-os cada vez mais num processo de alienação
sobre seu sofrimento, pois o sistema
psiquiátrico, o INSS e a própria empresa, tal como funcionam, impedem esses
homens e mulheres reelaborem as vivências de sofrimento psíquico.
Consequentemente, em muitos casos, desenvolvem quadro de transtorno mental
Uma escuta diferenciada para trabalhadores em
sofrimento psíquico permitiu que os participantes pudessem reelaborar suas
experiências de sofrimento e implicações com a experiência no mundo do
trabalho, além de um reimpoderamento do lugar de usuário que participa
ativamente de seu tratamento. Esse trabalho vem possibilitar um novo olhar na
instituição sobre os trabalhadores em sofrimento psíquico construindo espaços
diferenciados de escuta e intervenção, atendendo as perspectivas do modelo da
reforma psiquiátrica no qual prioriza a escuta do sujeito em seu contexto de
vida, gênero e trabalho, possibilitando assim, o distanciamento do olhar
hospitalocêntrico.
Referências bibliográficas:
Cruz, M. A. S (2006). Desafios da clínica
contemporânea: novas formas de “manicomialização”. In Fuks, L. B., Ferraz, F.
C. (Orgs.). O sintoma e suas faces.
(Cap. III, pp.101-116). São Paulo: Escuta/ Fapesp.
Dejours, C., Abdouchelli, E., & Jayet, C.(2007). Psicodinâmica do trabalho: Contribuições da
escola dejouriana à análise da relação de prazer, sofrimento e trabalho.
São Paulo: Atlas S.A.
Lobosque, A. M. (2001). Experiências
da loucura. Rio de Janeiro: Garamond.
Meireles, C. C
(2006). A Psicanálise e a instituição de saúde. In Fuks, L. B., Ferraz, F. C. (Orgs.). O sintoma e suas faces. (Cap. VII, pp.271-282).
São Paulo: Escuta/ Fapesp.
Montezuma, M.
A. (2001). A clínica na saúde mental. In Quinet, A. (org). Psicanálise e Psiquiatria: Controvérsias e divergências. (Cap. 5,
pp. 133- 140). Rio de janeiro: Rios ambiciosos.
Tenório, F.
(2000). Desmedicalizar e subjetivar; a especificidade da clínica de recepção. In
IPBU. Caderno n. 17 (79-90). Rio de Janeiro.
Tenório,
F.(2001). Da reforma psiquiátrica à clínica do sujeito. In Quinet, A. (org). Psicanálise e Psiquiatria: Controvérsias e
divergências. (Cap. 4, pp. 121- 131). Rio de janeiro: Rios ambiciosos.
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