Pequena reflexão sobre as transformações da família na contemporanedade

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                               Pequena reflexão sobre as transformações da família na contemporanedade


Por que me visto com negro de luto?
de luto pelas famílias que eu tive
pela loucura que nunca tive
-mas que agora me permito-
 pela diminuição do amor no mundo
pelas respectivas sinas de ambos os meus pais,
pelo maior amor que conheci
Sobretudo
 estou de luto pela minha própria morte
que é precisamente a morte que obstinadamente vivo”.
COOPER



            Desde a  segunda metade do século XX, acompanhamos atônitos as transformações sociais ocorrendo ao nosso redor, estamos num constante redemoinho de mudanças, nos sentimos impelidos a adaptar-nos. Não sabemos se nossos antepassados tinham a mesma visão ou se esta é fruto da velocidade das informações, que encurtam espaços, mas que também provocam distâncias afetivas.                
            Uma dessas transformações está no âmbito da organização familiar. Desde a origem da família, no qual foi criada para salvaguardar os bens adquiridos pelos homens e ao mesmo tempo garantir que esses bens fossem passados para geração seguinte, à  construção do romantismo, que introduziu a  afetividade no casamento, até a contemporaneidade em que o conceito familiar se estendeu e lidamos com as mais variadas formas de conjugação familiar.
             São transformações que acompanharam os modelos ideológicos e econômicos em suas respectivas épocas. O presente texto pretender fazer uma breve reflexão sobre a família contemporânea e a organização subjetiva dos indivíduos, para isso vamos fazer um recorte temporal e passar a família a partir do século XX até o presente momento.
                        A invenção do amor romântico por volta do século XIX, eternizado em romances como Whether de Goethe, Madame Bovari de Flaubert entre outros, introduz a afetividade nas escolhas afetivas. No Brasil cabe à obra "A Moreninha", do médico Joaquim Manuel de Macedo, lançada em 1844,  o primeiro romance romântico oficial da literatura nacional, destaca-se, também o romance Senhora ( 1875)  de José de Alencar, no qual mostra a passagem do casamento como um negócio para o casamento como uma relação de amor.
            Essas idéias associado ao capitalismo que preconizava a liberdade e o individualismo trouxe transformações para a organização familiar. Casar por amor era o ideal almejado por jovens do século XX, embora outras questões igualmente importantes, como vida sexual, adultério, homossexualidade, dominação do gênero masculino sobre o feminino ficavam maculada pela áurea do casamento por amor.  Os indivíduos acreditavam poder escolher seus pares que viveriam, até a morte de um deles.  Assim a família se adaptava ao novo cenário “libertário”.
            Nos anos 60 do século XX, conseqüente da revolução feminina despertada pela afirmação da mulher no mercado de trabalho, as questões que estavam “abafadas“ com o ideal da conjugação familiar vieram à tona em manifestações públicas e em textos literários e científicos. A família como tal sofreu denúncias, de normatizadora de regras sociais burguesas, principal responsável pela repressão da sexualidade, e da manutenção da mulher a submissão masculina.
             Cooper (1994, pág.26), argumenta que a família tolhe as expressões verdadeiras dos indivíduos, segundo ele “ a família é especialista em estabelecer papéis para os seus membros, mais do que em criar as condições para cada um  assumir livremente a sua identidade”. Para o autor a família está a serviço de uma função primária de socialização do indivíduo, onde instila controles sociais na criança. Segundo Cooper :
           
“Na realidade, o que basicamente se ensina à criança não é como   sobreviver na sociedade, mas como submeter-se a ela.Os jogos organizados e as operações de aprendizagem mecânica  na      escola tomam o lugar das experiências mais profundas de criatividade espontânea, dos jogos inventivos e do livre desenvolvimento de sonhos e fantasias”.pág. 27

            Seguindo o mesmo autor, a família é responsável pela perda de um self autêntico, e uma sexualidade reprimida devido seu caráter regularizador. Kafka, um dos mais expressivos escritos do início do século XX, vive uma experiência esmagadora dessa família, tendo como temas recorrentes em seus textos, a opressão das instituições sobre o indivíduo. Em seu escrito Cartas ao pai[1] retrata bem como ocorre essa influência.

“...Não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia.Não era permitido sorver o vinagre, mas você podia. O principal era que se cortasse o pão direito, mas o fato de que você o fizesse com uma faca pingando molho era indiferente....esses pormenores teriam sido em si mesmos totalmente insignificantes, eles só me oprimiam porquê você, o homem tão imensamente decisivo, não entendia ele mesmo os mandamentos que me impunha. Com isso, o mundo se dividia para mim em três partes:uma onde eu, o escravo, vivia sob leis que tinham sido inventadas só para mim e às quais, além disso, não sabia por que,nunca podia responder plenamente; depois, um segundo mundo,infinitamente distante do meu, no qual você vivia, ocupado em governar, dar  ordens e irritar-se com o seu não cumprimento; e finalmente um terceiro mundo, onde as outras pessoas viviam felizes e livres de ordens e  de obediência”. (pág. 20)


                                  No modelo familiar  vigente no século XX, os papéis familiares eram pré- determinados e a ordem familiar se sobrepunha ao individuo. Para Kafka, a experiência familiar é vivida como opressora,  comprometendo a subjetividade[2], e as relações afetivas interpessoais e principalmente familiar, criando distâncias emocionais entre seus membros, cultivando o ódio, ressentimento e culpa naquele que se sente oprimido. Cooper propõe o fim dessa modalidade de configuração familiar para que o indivíduo seje mais livre em suas escolhas, e possua um self mais saudável.
                                  Reconhecemos hoje, organizações familiares totalmente diferentes daquelas vividas pelos nossos antepassados recentes. Mas será o sujeito mais autêntico nas manifestações de seu self ? Sarti (2000, pag. 43) informa que as questões que surgem em nossa contemporânea forma de organização familiar é de que as pessoas querem aprender, ao mesmo tempo a serem sós e a ‘serem juntas’. Para isso, têm que enfrentar a questão de que, ao abrir espaço para a individualidade, necessariamente se insinua uma ou outra concepção das relações familiares”
                      Esse novo cenário que se apresenta irá influenciar não só as relações interpessoais, mas a organização da subjetividade dos indivíduos. Goldenberg (2001) traz algumas contribuições nesse sentido, informando sobre a pluralidade de organizações familiares.

“...temos hoje novas idéias que   expressam melhor o que efetivamente ocorre no cotidiano de um casal, como  respeito às diferenças e ao espaço do outro, negociação diária, diálogo  permanente, troca, crescimento mútuo. Muito mais do que modelos sociais a   serem reproduzidos, homens e mulheres têm que inventar suas formas de  parceria amorosa. Casar, separar, casar de novo, namorar, cada um na sua casa, ter um(a) amante, ter um filho sem casar... São tantas as possibilidades que a escolha parece cada vez mais difícil”.( P.35)
                              
                               A autora argumenta que essa pluralidade relacional permite que os indivíduos reinventem constantemente novas formas de laços afetivos, tirando a obrigatoriedade de que estas sejam vividas apenas na órbita das instituições familiares transferindo-as para outras relações. Um dos exemplos está no campo da sexualidade, ou seja, a maneira como cada pessoa irá vivê-la,  saindo do âmbito rígido das proibições familiares e entrando naquele das possibilidades afetivas e sexuais de cada um. Goldenberg, reforça  essa idéia com a seguinte argumentação:

Trocamos a segurança e a estabilidade das relações antigas pela batalha permanente. Hoje, mais do que nunca, homens e mulheres são quase iguais, escolhem- se mais livremente, podem muito mais facilmente separar -se, há entre o casal menor diferença de idade e de cultura do que antes, cada parceiro reconhece com  maior boa vontade a autonomia e espaço que o outro reivindica, algumas vezes partilham em igualdade de condições os cuidados da casa e dos filhos, têm amigos, prazeres e distrações comuns.
...
Fazemos parte de uma geração de transição, que aposta e investe em uma maior qualidade do relacionamento amoroso. Mudar implica perdas e riscos, abrir mão de privilégios e questionar as imposições sociais, ter uma atitude criativa e crítica frente à própria vida, deixando de lado falsos mitos de felicidade.


                     Enquanto que para Goldenberg essas novas configurações relacionais são motivadas pela criatividade dos indivíduos, de reinventarem novas possibilidades para estarem juntos. Sarti (2000, pág, 43) enfoca a ambivalência desta condição, baseando-se nos trabalhos de Giddens, esclarece que  “essa transformação de intimidade como fenômeno de ordem simbólica, cujo o fundamento está na transformação da ética pessoal como um todo, o que nos permite requalificar as relações entre o homem e a mulher, a partir da afirmação da autonomia de cada um”.
Embora a autonomia seja um marco relacional, a compulsão, como fenômeno na contemporanedade, também é. O comportamento compulsivo representando a perda do controle sobre o “eu”, portando a perda da autonomia, ou seja, da capacidade de escolher. Age-se movido não por uma escolha, mas por uma impossibilidade de  dizer “não”.  Diante  desse cenário, Bauman ( 2003)  aponto para a fragilidade das relações humanas.
“ Para nós,  os habitantes desse líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo, nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser mais do que aquilo que estamos  dispostos a exigir numa barganha. Estabelecer um vículo de afinidade proclama a intensão de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco- mas também a presteza em pagar um preço pelo avatar na moeda da labuta diária e enfadonha.”(p.46)

            Vivemos numa época em que a troca ou a escolha de parceiros amorosos e sexuais é vista como uma vantagem, facilitada pelas redes sociais. Ao toque de uma tecla pode-se criar intimadade com pessoas no universo virtual, assim como desfazer relações. Sem que para isso precise se comprometer.

Isso me faz lembrar a questão sartriana sobre a liberdade, onde o filósofo argumenta que ao assumir a liberdade, com todo o seu peso e angústia, o homem assume a responsabilidade para com toda a humanidade. E parafraseando uma sitação de Sartre, onde o homem pós-moderno está condenado a Liberdade, portanto o que fazer com ela?




Bibliografia:


BAUMAN, Zygmunt- Amor líquido. Rio de janeiro. Ed. Zahar, 2004

CHAUÍ, Marilena – Convite à Filosofia.Ed. Ática,São Paulo,1996

COOPER, A morte da família. São Paulo. Ed . Martins Fontes, 1994

GOLDENBERG, Miriam - Sobre a invenção do casal. Artigo 7 In Estudos e pesquisas em Psicologia, UERJ/ RJ, Ano 1, n. 1, 1º semestre de 2001
                                                                                                                      
KAFKA, Franz – Cartas ao Pai. São Paulo. Ed. Brasiliense, 4ª edição, 1992

SARTI, Cynhia A. – Família e individualidade :um problema moderno. In CARVALHO, Maria do Carmo B. (org)- A família Contemporânea em debate. Ed. Cortez/EDUC,São Paulo, 2000

     





[1]Texto escrito em 1919 e publicado 26 anos após sua morte
[2] Tema presente no conto Metamorfose (1912/1915)

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